2.3.10

Carta Aberta ao Daniel Azulay, 2009

grafite e datilografia sobre papel
60 x 40cm
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Este trabalho é formado por uma carta onde responsabilizo o cartunista Daniel Azulay  pelo fato de eu ter me tornado artista, e ainda por cinco desenhos que fiz quando eu tinha sete anos de idade, copiando os personagens que o cartunista desenhava em seu programa de TV, no começo da década de oitenta. 
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Abaixo, imagens dos desenhos e da carta datilografada.
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Abaixo, o texto da carta:

São Paulo, final da primeira década do século XXI


Daniel Azulay


você é responsável pelo que me tornei.


E privo-me aqui de tratá-lo de senhor, pois somos muito íntimos. Afinal, você esteve todas as manhãs da minha infância – ou tardes, minha memória é falha no campo dos detalhes – na Telefunken lá de casa, vendo-me e fazendo-me crescer. Evitando delongas com exaustivos flashbacks, corto a cena da sala de casa, eu de bruços no tapete com o olhar fixo na Dona Chicória, para a de hoje em dia, eu em frente ao espelho chegando à conclusão: Daniel Azulay, virei artista por sua causa.


Parecia fácil quando o seu pincel mágico, num efeito especial rupestre se comparado aos de hoje em dia, fazia surgir figuras que me encantavam num simples deslizar sobre o papel. No início da vida isto ia me deixando a sensação de que criar – perdão pelo uso de um verbo tão bíblico – era uma epifania rodeada de delícias. Assuma, Daniel Azulay, você iludiu minha geração.

Eu ainda usava Hering branca com meu nome bordado quando me dei bem nas primeiras aulas de Educação Artística. Vinha a professora com a caixa de massinhas coloridas e eu fazia lindas esculturas. Depois eu pintava com canetinha o indiozinho mimeografado. Tal qual fantasma acampado em meu ombro, no fim dessas aulas você sussurrava ao meu ouvido: muito bem, garoto! E eu entrava feliz no CMTC azul e cinza, de volta para casa..

Desconfio que haja uma Estrutura sustentada por uma burocracia sem precedentes: recebendo as pobres crianças, já no primeiro círculo ou patamar, devem estar os Daniéis Azulays de cada década, saudando as criancinhas com lápis coloridos de trinta e seis cores. Círculos e círculos depois, lá estão os futuros Daniéis Azulays esperando apetitosamente as antigas criancinhas que morderam a isca e viraram artistas: Daniel Duchamp dando xeque-mate; Daniel Beuys descascando batatas; Daniel Warhol promovendo festas rodeado de drogas, dinheiro e ironia; Daniel Kosuth puxando nossa cadeira; Daniel Oiticica à espreita da presa caída em seus ninhos para que sua cúmplice, Lygia Daniel, envolva a vítima e chupe-lhe o umbigo; e assim vai... Até mesmo Daniel Leonilson, instigando nêgo a botar as intimidades a público, como eu. Triste saber que você, Daniel Azulay, recepcionou boa parte das criancinhas oitentistas e empurrou-as depois para a arapuca. E hoje deve viver aposentado por aí – bancado pela Previdência Social que é sustentada pela Estrutura – incólome, fingindo-se de inocente, como todos os velhinhos fingem ser.

Caro Daniel Azulay, longe de ser uma vingança tardia, esta carta que até mesmo com pesar escrevo, é apenas um colocar os pingos nos “is” e nos “jotas”. Quero deixar pública a ação da Estrutura para que os pais atentem-se a isto tudo. Afinal, a Estrutura funciona muito bem se olharmos com atenção redobrada os jardins de infância: Zezinho, quanto é três mais três? Seis, responde Zezinho, e a Estrutura fará dele um engenheiro. Ao lado, Joãozinho sente inveja da inteligência nojenta de Zezinho ao mesmo tempo que tenta tirar a casca do machucado no joelho que ganhou no futebol. Preocupe-se não, Joãozinho, a Estrutura fará de você o jogador de futebol que renovará o patriotismo e sustentará os publicitários. E, no canto da sala, eu desenhava a professora no caderno. Ela, fingindo não perceber, ao toque do final da aula assinava o relatório onde avisava tudo ao Departamento Artístico da Estrutura, que já tratava de cuidar do meu caso e agendar minha vaga na ala da humanidade que tenta empurrar os limites da liberdade sempre um pouco mais para lá, descobrir brechas e renovar o ar.

Só mais uma coisa, caro Daniel Azulay. É bobagem chorar o leite derramado: já que mordi a isca, cheguei a diplomar-me no assunto e hoje olho intrigado para as coisas que faço, se estas mal escritas linhas atingirem sua leitura, por favor entre em contato escrevendo o endereço de onde você estica a velhice dando aulas de desenho. Até hoje, por mais que eu tente, não consigo desenhar, com a destreza e a perfeição do traço que só você tinha ao empunhar o pincel atômico, nem metade da Turma do Lambe-Lambe.
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Saudosamente
Fabio Morais
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Ah, Daniel Azulay, os desenhos da Turma do Lambe-Lambe que ilustram esta carta aberta foram feitos por mim, em meados de 1982, quando eu tinha sete anos. O que você acha deles?