7.8.17

De: Dani
Para: Dan
Quarta-feira, 9:45, 12 de julho de 2017
Assunto: Re: ARQUIVOS ANEXOS

Eu não entendi se no último instante você sussurrou a frase escrota do nosso pacto. A única coisa que ficou clara, Dan, é que você teve tempo de disparar esse e-mail, ao qual respondo agora de forma inútil, ou melhor, lúdica. Mas é evidente que o envio pode ter sido feito por algum hacker que, para dar um send no que você havia digitado, invadiu seu celular enquanto ele ainda era segurado pela sua mão ensanguentada, talvez até decepada do corpo, talvez apenas um naco de carne, osso e gordura agarrado ao aparelho. Agradeço sua gentileza, hacker que também deve estar vigiando meu computador, por ter entendido o grau de uma relação e dado esse empurrão para que o e-mail chegasse a mim antes de o celular ser enviado para algum órgão de inteligência, onde agora deve estar sendo vasculhado.

A notificação sonora do meu celular acusou o recebimento do seu e-mail bem no momento em que a música assustadora do plantão do telejornal interrompia a programação das dezoito horas. Você precisava ter assistido. Era visível o ódio do apresentador. Ele narrava em tom de bronca a cena do seu corpo sendo resgatado. Para ele, isso tudo deveria ter acontecido no meio do Jornal Nacional. As mais caras cotas de publicidade haviam sido negociadas para que a transmissão ao vivo do seu resgate reforçasse a dramaturgia jornalística que serve de catarse à classe média brasileira, garantindo assim a audiência que venderia os modelos Tucson daquela noite: carros que encapsulam o fracasso humano de seus donos, atropelam e matam.

Desde hoje de manhã a imprensa diz que você está em um CTI. Imagino que com meganhas na porta e espalhados por todo o hospital militar. Mas considero que você morreu. Por seu heroísmo e coragem, prefiro pensar assim. Chorei quando vi seu rosto vivo no plantão do telejornal, no instante em que o resgate levava você em direção a todas as etapas médico-jurídicas da praxe oficial. Chorei por você não ter morrido e, por isso, ter caído no núcleo sem volta do biopoder: a medicina e a justiça. Enquanto assistia ao seu resgate pela TV, eu imaginava que em muito pouco tempo uma equipe de enfermagem entraria em seu quarto para lhe enfiar uma agulha com alguma substância que tentaria combater as opções político-autodestrutivas do seu corpo. E que em algum edifício cheio de ácaros, um escriturário redigiria a melhor forma de o Ministério Público acabar com a sua vida reduzindo você a uma aberração ética a ser enjaulada.

Para a construção da farsa midiática, as TVs repetiram à exaustão a cena do seu resgate. Foi quando engatilhei minha arma e dei um tiro na TV, na cara do apresentador da Globonews. Como quem joga as mais lindas flores no caixão sendo baixado, joguei a TV baleada pela janela do nono andar. Um obelisco negativo. Agora há pouco, na reunião extraordinária do condomínio, não assumi que fui eu que fiz isso. Você teria gostado de mais essa minha mise-en-scène.

Antes de ir à reunião, passei toda a manhã sobre a moto, atirando nos jornais que deram capa à imagem do seu resgate. Até me arrepio pensando agora no risco que corri de a PM mais mequetrefe me prender como reles assaltante de banca de jornal e ter de responder por crime tão apolítico. Eu não saberia me defender de acusações apolíticas. Mas na hora a cegueira foi tanta, a vontade de ritualizar você de forma vingativa e performática foi tamanha, que nem pensei. Agi. Eu recomendaria a todo mundo que se sente impotente perante o fato de alguém importante em sua vida ter sido prejudicado em prol do capital, que experimentasse a sensação de sair em disparada, quebrar limites de velocidade, sentir as lágrimas quentes escorrerem pelo rosto até salgarem o canto da boca enquanto, dentro do capacete, se sussurra frases escrotas cujo ponto final coincide com um disparo em jornais que, sustentados pelo capital, rifam aquilo que o ocidente convencionou chamar de democracia.

Estou desde ontem escrevendo esse e-mail e voltei a ele várias vezes ao longo do dia de hoje. Não tenho pressa. Irei enviá-lo apenas quando você livrar-se da medicina. Você terá de escapar também da justiça. E depois ainda safar-se da sanha de vingança de nossa população treinada em academias de ginástica e em corridinhas flácidas de final de semana para oferecer o próprio corpo como marionete verde e amarela do William Bonner. Será que um dia você poderá ler isso que escrevo? É tudo tão contraditório, ou pseudo qualquer coisa, porque simbolicamente considero que você morreu, apesar de não sentir isso.

Amanhã começo a trabalhar pela contra-história, tentando propagá-la via linguagem e, quem sabe, expô-la também de forma crua. É preciso deixar todas as feridas abertas, nauseando o jantar que reúne historiadores e elite econômica. No plano da urgência, não há muita coisa que eu possa fazer desde que abandonei o crime e a arte. Enquanto coube a você continuar agindo e mudando a materialidade geral do agora, depus as armas e preservei apenas uma comigo. Aos poucos, deixei o crime físico-político a fim de interferir no entendimento da história, seja nauseando adolescentes nas aulas que passei a dar de História Real do Brasil, seja através de sabotagens acadêmico-bibliográficas nas quais tanto mudo escolhas semânticas que no decorrer do tempo regem a construção dos significados, quanto resgato quem e o quê foram condenados a objetos diretos em orações subordinadas, alçando-os a sujeitos das orações principais. Ter trocado armas por aulas e pesquisas, como você bem me disse naquele verão baiano em que a gente se afogou no raso, acalmou minhas ansiedades e treinou-me na ética da conspiração que, convenhamos, abre aspas, condiz melhor com meu guarda-roupa e com minha biblioteca, fecha aspas. Mas escrevo tudo isso só para lhe dizer que, com tudo o que aconteceu nas últimas horas, voltei a guardar as metralhadoras no guarda-roupa. A pistola que você me deu dentro daquele ovo de Páscoa está na biblioteca, entre Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão e Teoria King Kong. Ainda falta um livro que preencha o espaço entre esses dois.

Entre o último parágrafo e agora passaram-se várias horas, Dan. Mas pouca coisa mudou. O ódio social ainda escorre no canto da boca das pessoas. Soltaram os ódios de si mesmo e incentivaram que fossem projetados no outro, que a vingança social fosse a catarse teatral e perigosa do eu patológico que, sem a digna coragem dos suicidas, resolve-se na covardia de eliminar o outro. Somado ao global fenômeno dos haters, não esqueçamos do fato de que nossa colonização foi um empreendimento mercantil de ódio social. Agora, o ódio tem reavançado sobre tudo, como quem solta os cães. Fascisminho Globonews de quinta, roteiro já previsto quando se lê a história dos Marinho, dos Frias, dos Mesquitas.

No intervalo entre os comerciais, a imprensa televisiva continua espremendo seu mito o máximo que consegue. Para ela, um mito negativo. Para nós, alguém de quem gostamos. Sua história ainda é comentada 24 horas por dia. O que aconteceu com você triplicou a audiência das TVs. E, com a audiência turbinada pela narrativa hospitalar do seu drama, o governo aproveitou para comprar o máximo de cotas de publicidade para veicular a propaganda oficial que enfia goela abaixo da população aquilo que ela ainda não entendeu que a asfixiará. 

Em um jornal de hoje, foi publicada uma fotobiografia sua. Estou no fundo da cena em uma das imagens, bem mais jovem e inocente, ainda de óculos. Presumo que se conseguirmos a redemocratização, logo sua história virará filme e em poucos anos haverá várias biografias suas, cada uma apresentando você pelo ângulo conveniente para quem a financiou. Eu e, abre aspas, Dina Sfat, fecha aspas, já estamos juntando documentos e informações para sua contra-biografia, oposta à narrativa oficial.

Mas, não se preocupe. Cuidaremos para que sua contra-biografia não seja escrita por um homem. Não poderíamos esquecer o quanto você despreza escritores homens e seus ego-narradores rodeados de personagens mulheres incríveis que, criadas pela carência fantasiosa do escritor, sempre se envolvem de maneira inexplicável com a roubada estética e relacional que são esses ego-narradores. Espelhando e ostentando o próprio machismo incrustado - lembro-me que você me disse isso em nossa última noite no karaokê - esses escritores assediam os corpos dessas personagens femininas ao descrever seus lábios, seus peitos e seu andar no exato momento em que essas mulheres aparecem no texto, forçando quem lê a ser testemunha cognitiva e passiva desse assédio. Acabo de me lembrar de tudo, Dan. Depois, subimos ao palco e fizemos absolutamente tudo o que a Etta James fez naquele vídeo que tanto assistimos online, o de seu show no Festival de Montreux de 1975. Na volta para nossa mesa, você roubou a cuba libre de uma mesa distraída e, reforçando sua mania de retomar assuntos que todo mundo já esqueceu, você se sentou, virou a cuba libre em um gole e disse-me que não tinha mais paciência para a literatura como refém da crise que escritores homens têm com a inutilidade patético-simbólica do próprio pau. O grande inimigo não é o capitalismo, é o masculino, você completou e pediu dois dry martinis. E a cidade amanheceu com essa última afirmação pichada em muros, ao longo dos corredores de ônibus.

Além de trabalhar para sua contra-biografia, farei tudo o que posso para que, quando o país entender seu heroísmo, seu nome jamais seja usado para nomear um viaduto. Sei o quanto você sempre desprezou a engenharia como vetor macho da civilização branca ocidental e a arquitetura como projeto estético levemente afetado desse mesmo vetor.

Hoje pela manhã escrevi sobre nossas noites no karaokê, mas só agora no final da tarde lembrei-me que há dias achei online aquele vídeo em que, em um show, a Etta James gesticula trepar com o público e, de repente, a cena corta para a plateia e foca toda a empolgação da Nina Simone aplaudindo a amiga. A Etta James e a Nina Simone são a Elza Soares deles. Eu deveria ter lhe mandado o link, Dan. Mas como não ter esperança de que ainda iremos rir muito ao assistir a isso?

Esse e-mail ficou abandonado por alguns dias, Dan. É necessário deixar a vida acontecer para voltar a escreve-la, sem colocar a escrita à sua frente. A linguagem é um sabor artificial de, a ser consumido apenas em momentos pontuais. Como quando estou na estrada há horas e me rendo ao pão de queijo emborrachado do Graal. A escrita não é mais que isso: algo artificial que deveria ser evitado.

No sábado, assisti a, abre aspas, Boas Garotas, fecha aspas. Quem me alertou que eu deveria ver essa apresentação foi a, abre aspas, Thereza, fecha aspas. Ela tinha razão. Lá, encontrei, abre aspas, o Caio e a Tina, fecha aspas, que disseram-me estar acompanhando essa história toda. Uma de nossas patroas, abre aspas, a Lívia, fecha aspas, também estava e questionou o fato de eu não trabalhar sábado à noite. Eis os ares dos direitos trabalhistas recém aniquilados. Estava também, abre aspas, o Daniel, fecha aspas, e no instante em que o cumprimentei lembrei que ele havia falado, não sei quando, que também dançava. Logo em seguida, me recordei que ele também havia mencionado a tradução que estava fazendo para, abre aspas, A Bolha, fecha aspas, editora que eu e você tanto gostamos, da pessoa física à jurídica. Mas, no fim, não comentei nada disso com o, abre aspas, Daniel, fecha aspas. Meu gesto "ostra". Ali na hora, no vai e vem de papos e sociais, o fato de o, abre aspas, Daniel, fecha aspas, ser tradutor me fez lembrar também do livro da, abre aspas, Marília, fecha aspas, que estou lendo. Aliás, nessa noite o livro estava na minha bolsa. Nele, há um poema em que a, abre aspas, Marília, fecha aspas, fala dos questionamentos que sua tradutora para o inglês lhe faz. Como todo tradutor, ela tenta decifrar com exatidão certos significados que -
 quem escreve sabe - não têm a menor exatidão.

Nessa noite, Dan, em vários momentos eu pensava que você deveria estar ali conosco, flanando pesos e fixando o que é leve, falando baixo, rindo alto e experimentando a inexatidão dos significados artificiais de.

Depois da apresentação, saí apressadamente e fui encontrar-me com, abre aspas, você sabe quem, fecha aspas. Trocamos as farpas que faltavam ser trocadas. Mas dessa vez a crueldade partiu de mim. Saí de casa para isso. Até os orientais sabem que 2010 acabou faz tempo. Pow! Feliz Ano Novo!

Antes da uma da madrugada eu já estava em casa. Não acessei sites de notícias e nem liguei a TV para saber de você. Abri esse e-mail para lhe escrever algo, mas não consegui. Estou escrevendo tudo isso apenas hoje. Coloquei os fones e fiquei madrugada adentro ouvindo a Nina Simone cantando Suzanne, naquele show no Teatro Sistina em 1969. Sim, aquele vídeo online que tanto vimos e dançamos na sala da sua casa, projetando as imagens pxb na parede para que a Nina dançasse conosco, projetada sobre nossos desajeitos. Como é lindo a Nina africanizando Suzanne nesse show. Como é lindo. Como, Dan. Como.

Ouvi Suzanne inúmeras vezes enquanto relia nossos e-mails. Não li letras e palavras, mas os vazios entre elas. Talvez isso tenha sido reflexo da apresentação de, abre aspas, Boas Garotas, fecha aspas. Parecia-me que as duas dançarinas realizavam o mínimo do gesto, como se ele fosse frustrado pelo corpo tentando represá-lo sem o expressar. Daí a contenção da explosão que não estoura, apenas faísca o bastante para iluminar as serifas. Isso tudo me encheu de certa negatividade e por isso fiquei deslizando meu olhar pelos vazios dos nossos e-mails, procurando, de modo inútil, que as pontas das serifas dissessem algo. Minha leitura dançava Suzanne em meio aos vazios entre as letras, usando-as como as partners de final de semana com que eu traía o texto de uma vida.

No auge do momento em que a Nina Simone dança o mais lindo batuque com Suzanne, me distraí da minha deriva entre os vazios do texto e dei de cara com a palavra arquivos, logo no início de seu e-mail. Foi quando me lembrei de lhe esclarecer: pedi que me enviasse todos aqueles arquivos porque meu HD externo sumiu. De modo misterioso ou não, sabemos bem.

Respirei fundo e tive coragem de abrir os arquivos todos. É engraçado ver por onde passou a inflamação de nossas insurgências. As coisas que lemos e a que assistimos, o que fingimos entender e o que entendemos com nosso modo apressado e carnavalesco, misturando pensamento complexo com fala de cartomante. Nosso empreendimento falsificado de vida onde recopiávamos nossa identidade digital, sem matriz, fazendo com que nossas gatunas sete vidas se transformassem em quarenta e nove, trezentas e quarenta e três, duas mil quatrocentas e uma... Ouvi a playlist que você mandou junto. Como sempre, me arrepiei com a gravação de 1972 de Sábado Morto. E vi nossas fotos. É engraçado revê-las. Em muitas imagens, no grupo, a gente sequer se nota. Noutras, a gente se olha tecnicamente, uma reta furando debates. Em duas, estamos no grupo dos feridos, recebendo os primeiros socorros da ética do inimigo. Também noutras duas, olhares mísseis. Em uma, fica tudo muito evidente e desequilibrado, bem no eixo de nossos desajeitos.

E o domingo amanheceu enquanto eu ouvia Sábado Morto, ad infinitum.

Acabo de voltar da casa de, abre aspas, Dina Sfat, fecha aspas. Passamos a tarde conversando em sua, abre aspas, rede vermelha, fecha aspas, com o LP da Dila rodando no toca discos. Perdi a conta de quantas vezes disputamos no par ou ímpar quem iria sair da rede para ir até a vitrola trocar o lado do LP. Na volta para casa, deixei Dila em Santa Ifigênia, para digitalizá-la.

Você conhece bem a, abre aspas, Dina Sfat, fecha aspas. Sabe do modo desconexo como ela confabula as coisas, juntando os lés mais distantes com os crés mais alienígenas. Pois bem, lá pelas tantas ela disse algo que me fez voltar para casa com toda ansiedade para lhe escrever. Soltando no ar o comentário mais despretensioso, abre aspas, Dina Sfat, fecha aspas, confabulou se talvez os hackers que vigiam meu computador não poderiam invadir o sistema do hospital onde você está e enviar esse e-mail, que lhe escrevo há dias, para os aparelhos acoplados ao seu corpo.

Na hora, achei que, abre aspas, Dina Sfat, fecha aspas, estava delirando. Porém, essa ideia foi decantando em mim. Agora, frente à tela onde lhe digito esse e-mail, admito que escrevo com a esperança de que hackers estejam lhe enviando essa mensagem do mesmo modo como, creio eu, possibilitaram que seu e-mail chegasse a mim. Por que não crer que essa mensagem cheia de desabafos e fofocas não estaria atingindo o fundo de seu coma induzido através dos eletrodos que o Ministério da Defesa ordena que permaneçam grudados em sua têmporas?

Dan, logo após digitar a palavra têmporas, hackers abordaram-me usando variados tipos de inglês, com mensagens que pipocavam na tela do meu computador e também através de ligações diretas no meu celular. A maioria dos hackers afirmou que sim, talvez seja possível enviar esse e-mail para os aparelhos que monitoram seu corpo. Alguns prometeram que iam agora mesmo começar a pesquisar um modo de fazer isso. Outros se mostraram mais reticentes quanto ao sucesso, porém animados em tentar. Se aparelhos hospitalares vigiam e capturam dados do seu organismo, codificam-nos e os emitem para fora em linguagem medicinal, para que os médicos leiam sua saúde e controlem seu corpo, os hackers precisam, não apenas invadir esses aparelhos, mas também inverter a via: fazer com que algo aqui de fora, como essa linguagem epistolar, seja recodificado e emitido para dentro de seu organismo, em linguagem biológica. Como tudo isto aqui, trata-se apenas de um exercício experimental de linguagem.

Quase todos os hackers foram unânimes em comentar que, embora a possibilidade dessa inversão possa ser viável, é difícil saber como os aparelhos que monitoram seu corpo receberão esse e-mail, processarão dados, administrarão relações de interfaces e traduzirão essa mensagem para introduzi-la em seu organismo. Na verdade, não sabemos nem que partes do organismo lhe restam, que correntes eletrobiológicas ainda correm no que sobrou de você, ou a que se resume sua sensibilidade hoje. Se os hackers conseguirem lhe enviar esse e-mail, não há como prever se você o lerá projetado no vácuo do seu coma, ou se terá insights mentais, se sentirá leves choques, se abrirá os olhos a cada sinal de pontuação, se sentirá enjoo, se sofrerá com os erros de digitação, se receberá estímulos nervosos, se tudo será apenas onírico ou pura cocaína.

Será que você intuirá que sou responsável pelas repentinas sensações estranhas que seu corpo experimenta? E ainda saberá decifrar essa nova criptografia criada por nós de forma tão desproposital e sem um código acordado de antemão? Será que você se dará conta do quanto nossa relação sempre passou por essas questões? Espero que, para quem aprendeu a decifrar a coreografia de digitações em smartphones, seja fácil dominar esse idioma que só existirá a partir do momento em que começarmos a falá-lo.

Quando você ler tudo isso, sei que irá se surpreender com minha empolgação. Entre nós, o pessimismo foi sempre meu e a paixão empolgada, sua. Você não imagina a sensação boa que experimento nesse instante: a de ser otimista. Sismógrafos têm sentido que estamos em uma derrocada, civilizacional e humana, em uma onda que se forma mas que é difícil e talvez impossível enxergar seu arco como um todo e em que lugar desse arco estamos. Haverá humanidade no século XXII? Ou apenas os fósseis deixados pelo neoliberalismo? Não sei. Conseguiremos, eu e você, continuar nossa troca epistolar? Pode ser. E esse pode ser, para mim, já é um otimismo que me faz enxergar melhor em que lugar estou desse arco. Dan, há anos não dou um pega. Mas, parafraseando você: Dan, dei mais dois pegas. Prepare-se: será que nós, eu e você, não passamos de sismógrafos que registram o abalo um do outro, como uma tatuagem tatuando outra tatuagem?

Sendo pessimista como sou, chego ao fim da linha do pessimismo e só me resta contar com os hackers. A partir de agora, considero que você poderá receber tudo o que digito aqui como uma linguagem-estímulo no que resta do seu organismo, cuja tradução em palavras você dominará em pouco tempo. Seu otimismo e empolgação, se não lhe fizeram mais inteligente que eu, sempre lhe deram a malandragem que, sabemos, é o signo sensual da inteligência.

Dan, passadas várias horas de silêncio, hackers acabam de me avisar em um pop-up que tudo o que digitei até aqui poderá ser enviado para os aparelhos acoplados ao que resta do seu corpo. E que toda e qualquer letra que eu teclar a partir de agora será remetida em tempo real para você. Se dermos sorte, cada letra lhe provocará algo diferente. Talvez os hackers possam se incumbir de reforçar essas diferenças, como um método de realfabetização. Não sabemos o que você sentirá ao receber um l, um a, um m, um b, um i, um d, um a. Sinta. Sentir é só e incomunicável. A linguagem é apenas o sistema de vigilância que tenta monitorar o que é sentido.

Penso que se, no fundo de seu coma induzido, você tiver acesso a todo seu inconsciente, talvez você se recorde das primeiras vezes que, ainda bebê, você associou os sons da fala com as coisas sobre as quais essas falas se referiam, para então se dar conta de que a fusão de certos sons gerava palavra. Espero que a partir de agora você perceba que o que está sentindo em seu corpo é todo o alfabeto, enviado letra por letra pelos hackers. Logo os hackers lhe enviarão este e-mail, alternando-o várias vezes com o alfabeto. Nessa alternância, você deverá perceber que o que eram letras-sensações, o alfabeto, passam a ser junção de letras, palavras-sensações que compõem esse e-mail. Não nos comunicamos por uma sintaxe de sensações? Dan, só me resta agora confiar nas toscas correntes eletromagnéticas dos aparelhos e nas secretas correntes eletromagnéticas do seu corpo. E no aprendizado malandro e sensual do seu organismo vietcong a á à ã â b c ç d e é ê f g h i í j k l m n o ó õ ô p q r s t u ú v w x y z a á à ã â b c ç d e é ê f g h i í j k l m n o ó õ ô p q r s t u ú v w x y z a á à ã â b c ç d e é ê f g h i í j k l m n o ó õ ô p q r s t u ú v w x y z a á à ã â b c ç d e é ê f g h i í j k l m n o ó õ ô p q r s t u ú v w x y z a á à ã â b c ç d e é ê f g h i í j k l m n o ó õ ô p q r s t u ú v w x y z a á à ã â b c ç d e é ê f g h i í j k l m n o ó õ ô p q r s t u ú v w x y z a á à ã â b c ç d e é ê f g h i í j k l m n o ó õ ô p q r s t u ú v w x y z a á à ã â b c ç d e é ê f g h i í j k l m n o ó õ ô p q r s t u ú v w x y z a á à ã â b c ç d e é ê f g h i í j k l m n o ó õ ô p q r s t u ú v w x y z a á à ã â b c ç d e é ê f g h i í j k l m n o ó õ ô p q r s t u ú v w x y z a á à ã â b c ç d e é ê f g h i í j k l m n o ó õ ô p q r s t u ú v w x y z a á à ã â b c ç d e é ê f g h i í j k l m n o ó õ ô p q r s t u ú v w x y z a á à ã â b c ç d e é ê f 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u ú v w x y z a á à ã â b c ç d e é ê f g h i í j k l m n o ó õ ô p q r s t u ú v w x y z a á à ã â b c ç d e é ê f g h i í j k l m n o ó õ ô p q r s t u ú v w x y z a á à ã â b c ç d e é ê f g h i í j k l m n o ó õ ô p q r s t u ú v w x y z a á à ã â b c ç d e é ê f g h i í j k l m n o ó õ ô p q r s t u ú v w x y z a á à ã â b c ç d e é ê f g h i í j k l m n o ó õ ô p q r s t u ú v w x y z a á à ã â b c ç d e é ê f g h i í j k l m n o ó õ ô p q r s t u ú v w x y z a á à ã â b c ç d e é ê f g h i í j k l m n o ó õ ô p q r s t u ú v w x y z a á à ã â b c ç d e é ê f g h i í j k l m n o ó õ ô p q r s t u ú v w x y z

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Em quinta-feira, 06 de julho de 2017 20:43, Dan escreveu:


Dani,

os arquivos que você me pediu seguem aqui anexos. Se puder, diga-me o que pretende fazer com eles. Acho curioso que você queira rever todo esse material tão datado. Várias teorias que lemos desde então podem ter caducado a relevância desses words, pdfs, mp4s, ppts... E nosso envolvimento com o crime deixa qualquer sistema de pensamento ou de produção de imagem um pouco frufrus. Pero, voilà, enjoy it et depois me diga.

Aproveito este e-mail para escrever algo através do qual, usando a tabela de códigos criptografados que xerocamos aquele dia na gráfica rápida da Mooca, você entenderá com nitidez a situação que nos ameaça. Isso servirá para que você cuide melhor de sua discrição. Abre aspas: a literatura epistolar não prende muito minha leitura, com exceção, é claro, de Caro Michele, da Natalia Ginzburg. Fecha aspas. Entendeu? Catou as entrelinhas? Usando a tabela de códigos criptografados, conseguiu traduzir o que eu quis dizer? Então, é isso. Proteja-se nesses termos. Mais pela adrenalina do proteger-se do que pela preservação da vida que, convenhamos, serve para ir sendo morrida célula por célula. Temos tantas moedas dessas, não é mesmo? Gastar a vida não significa ser consumista, pelo contrário, ser consumista é gastar com os produtos e serviços que a economizam. Farelo de pele é troco de pinga.

Dani, já nascemos em perigo. Resta-nos apostar na sorte de cara redonda e amarela, sorridente e filmada. Qualquer burro n'água é melhor que um cotidiano seguro e letárgico. A vida securitária trava o corpo e lembremos que, em reação à medicina preventiva e às seguradoras, optamos pela vida insecuritária, lotada até o talo de riscos, vírus, cáries, prejuízos, calotes, letreiros falhos e ressaca moral. Mas, tenhamos cautela, Dani, o projeto civilizatório que nos encarcera nega-nos o luxo da inocência. Nesse momento, você sabe, cagueta-se o outro não mais sob tortura, mas para se exibir sob os holofotes da vida online. 24 horas por dia pessoas geram provas do que fazemos - seja, por ciúme, perguntando por whatsapp onde estamos, seja tirando selfies para redes sociais bem no momento em que, no fundo da cena, estamos com a faca na jugular de um especulador financeiro. Todo sábado à noite, Las Meninas são banalizadas em selfies tiradas em elevadores espelhados: autorretratos de gente que já nem existe mais - puro jogo de ilusão, como o casal real da pintura - pessoas que são apenas imagem que gera imagem que gera imagem que gera imagem que gera poder de controle para as duas ou três megacorporações que determinam o tecnocorpo global. Assim, a egotrip carente e exibicionista vai amarrando, garantindo e sustentando o sistema de vigilância mundial.

O modo como estetizamos e inflamos nossa própria desimportância é chumbrega, né Dani? Credo. Até a vergonha alheia gosta de exibir sua tatuagem na virilha.

A vigilância mútua funciona 24/7, Dani. Todos trabalhamos para ela e para a grande merda que está aí. Pense que, no futuro, a grande merda terá todo um sistema de museus para se expor e ser preservada como estética e história - após cansar-se do rentismo financeiro e preferir repousar-se no conforto aveludado dos vídeos em hiper-definição, que tornam nossa vidinha não filmada cada vez mais pobre e rala. No futuro, Dani, todos os autorretratos que deixamos na rede formarão nossa autoMonalisa vazia, morta, cansada, constrangida e hiper-refotografada por hordas de stalkers memoralistas. Assim, nossa história continuará sendo controlada e vigiada, como essa gente que futuca, futuca e descobre que determinada múmia era gay. A gente mal sabe que merda os avós de nossos tataravós fizeram no mundo mas, em relação a nós, Dani, nossos tatarassobrinhos-netos continuarão acessando nossos atos por séculos, mesmo depois que nossa obsolescência programada tiver nos empurrado para o lixo do desktop.

Putz, Dani... sei lá... talvez tenha nos faltado, a mim e a você, certa ortogonalidade exigida, o que fez com que o cartesiano se falsificasse diluído em nossos hormônios. A gente se orienta por uma geometria de cupim, né?

Dani, o que quero dizer é que sei que você entendeu muito bem as mensagens criptografadas que estou usando ao longo desse e-mail, sobretudo a mensagem criptografada Ginzburg. Então, tá tudo dominado, podemos escrever o que quisermos nesse gmail-isca-para-otário e, de modo perverso, contribuir para que os analistas de crédito - ou a República Araponguista de Curitiba, dá no mesmo - que devem estar nos lendo agora, não em cópia mas em espionagem hackeada, possam se masturbar à vontade ao imaginar o sádico sistema global de segurança financeira nos sodomizando. A pira dessa gente é, antes de nos capitalizar, nos torturar.

Usei há pouco o verbo "sodomizar" para excitar a NSA, afinal, instituições excitam-se com vocabulários gastos - ler Museus Brasileiros e Arte Contemporânea, pp. 135-144.

O café ficou pronto, vou ali pegar.

Dani, não consegui voltar a esse e-mail tão cedo. Peguei o café mas daí muita coisa aconteceu. Sim, é o que você está pensando. Passei horas tentando contornar o que era contornável. Sabemos, não há saída, a não ser apertar as teclas F O D A - S E. E continuemos nossa vidinha besta...

O que você acha, Dani, de eu entrar nesse jogo de vigilância e continuar esse e-mail desse modo, abre aspas: ei!, você que agora nos lê, que nos hackeia em vigia, vá, coragem, não tem ninguém te vendo, enfie três dedos no cu. Supere-se, explore-se, é tudo teu, preciade-se, aproveite que agora este e-mail tenta ser tua dominatrix e entre nesse jogo pervertido e autoprotegido por camadas e camadas de interfaces que fazem da tua solidão o núcleo de uma ridícula cebola de xepa ralada no asfalto. Caso você se empolgue, a medicina poderá costurar tudo com os fios cicatrizantes que o projeto espacial do século passado desenvolveu para fechar a autópsia dos ETs. Em três décadas, o que a NASA desenvolve torna-se sucata, chega às gôndolas de supermercado e, assim, o pós-corpo regenera-se, mesmo que de modo cancerígeno. Foi mais ou menos isso o que aconteceu com o agente laranja e os agrotóxicos. Lembre-se de que quem é um agente político-financeiro, como você que espiona este e-mail, pode tudo e sequer tem pudores, quiçá entraves cristãos ou funcionalidades fordianas para os órgãos do corpo. Pense na ideia de corpo sem órgãos e aproveite que, sendo um agente político-financeiro, tua função é a de pegar ideias e deturpá-las em prol de qualquer marketing raso e rasteiro que refinancie as dívidas da engrenagem capitalista e emita moeda abstrata. Vá, não se limite à funcionalidade dos órgãos, soque a mão, abras os dedos, fecha aspas.

Te conheço, Dani. Sei que você irá me responder que, abre aspas, deixemos nossos espiões cibernéticos para lá, com três dedos enfiados no cu, em algum banheiro da nuvem. Do ponto de vista político, nosso crime ainda precisa ser físico e doméstico, bem ali na esquina, no lugar onde o país é uma calamidade social e não porcentagens em led da estatística global, fecha aspas. E quase tenho certeza de que, do alto de sua elegância em surfar pelos assuntos, você ainda dirá que, abre aspas, tanto o projeto espacial quanto o projeto construtivo brasileiro são lendas do século XX, fábulas que pouco nos deixaram além de plásticos resistentes e um cânone geométrico carcomido pela entropia das traças, fecha aspas. Como sempre confiei nas sentenças especulativas que surgem de nossa relação, nem irei averiguar se seus recursos discursivos, assim como minha mania de usar a escrita como storyboard para meu cinema recalcado, não estariam amortecendo o que deveria ser confronto direto.

Dani, o que divide o parágrafo anterior deste aqui não é apenas um espaço em branco que marque a mudança de assunto - lembrei-me agora daquele voo no qual passamos todo o tempo tentando fixar o território volátil que garante que em uma conversa os assuntos girem e mudem de pato pra ganso. Precisei interromper a escrita deste e-mail por várias horas. Enquanto te escrevia sobre agentes credit card com três dedos no cu, o porteiro interfonou avisando que três seres altos com Ray Ban espelhado estavam subindo para averiguação. Tive de atendê-los. Ficaram todo esse tempo aqui, fingindo instalar um chuveiro. Tudo ok, a costumeira intimidação simbólica. Algo com que nos acostumamos desde a época em que, antes de chegarmos ao crime, estagiamos a amoralidade no campo da arte, lembra-se? Fazíamos ações situacionistas absurdas e invasivas no meio da rua. Daí a clonar biometrias para burlar agências bancárias nobres ou imprimi-las em fotografias lightjet, e com elas ganhar bolsas e residências, foi um pulo.

Os três Kafkas de Ray Ban foram embora e anexei a este e-mail mais dois arquivos, você vai perceber quais e entender porquê fiz isso. Pegue de novo a tabela de códigos criptografados que xerocamos na Mooca para você entender o que te escrevo agora. E você aí, que nos lê em espionagem, câmbio e decifre. Abre aspas: lembro-me como hoje do dia em que você chegou com Caro Michele ainda no plástico, prostrou-se sob o batente da porta, com seu corpinho suspeito fedendo a cidade, com os cabelos mal ajambrados, segurando o boleto vencido do plano de saúde, com um tiro no queixo e com a guimba presa no osso da mandíbula. Seguindo os manuais de gambiarra vietcong, resolvemos tudo com muito açúcar e band aid. Naquela época, a gente se protegia da medicina, mas não das contaminações. Alpendre, city. Saca aquela história de sifilização? E a gagueira que pó azia com Creta nos d a d a da da Dada dava? Fecha aspas. Entendeu o que eu quis dizer, Dani? Sei que sim. E você, russestadunidense que nos lê em vigia, brusque respostas no google plus da Casa Branca barra Kremlin.

Dani, tome as providências e avise quem você está pensando. O cerco se fecha, mas eles não sabem da nossa bunda-rabo-de-lagartixa, tecnologia circense, porém imbatível. Não é preciso panicar. É óbvio que somos o lado perdedor da história, o que não significa que devamos viver a vidinha resignada dos perdedores. Tomemos cuidado e continuemos incomodando.

Na atual fase da colmeia humana, quem não está sendo vigiado, não é mesmo? Até você que nos lê, agente de qualquer órgão secreto que já protagonizou algum filme, é apenas a base e o topo da pirâmide de um sistema no qual tudo vigia tudo. Quem está no topo da pirâmide? Sabe-se lá, cada um coloca seu vigiador no topo da própria pirâmide. Sistema fechado em paralaxe móvel. Simule procurar passagens aéreas em sites de compras e em três segundos você terá seu computador invadido por falsas ofertas. Ache uma sala vazia em um museu de arte, entre, permaneça lá por três segundos e logo você sentirá um segurança de Ray Ban se aproximando e fungando na sua nuca. Antes de ser considerado público de arte, qualquer um é considerado uma ameaça que pode fazer a seguradora ter de pagar por uma obra de pouca materialidade e conceito inflado. A vigilância é bem mais cotidiana e menos romântica que a ideia de 007. A  pirâmide mudou de forma, já não há mais topo e nenhum vigiador que possa ser personalizado. Mais que pirâmides, há platitudes com zonas fortificadas de conforto e comando. E eu e você também vigiamos os outros sem nem perceber.

Somos um pixel de toda essa imagem distópica, Dani. Parecemos inocentes, mas não somos. Isolado, um pixel é nada, apenas um quadrado desbotado que, unido a mais um milhão, ajuda a formar a imagem da merda sem nem perceber a merda de que faz parte. O ser humano do século XXI é tão tolo e sem possibilidade de recuo visual autorreconhecedor quanto um pixel grudado na grade. Enquanto isso, a psicanálise e suas primas, das ciências às feitiçarias, insistem em fazer-nos acreditar que ainda somos um "eu", ao invés de um pixel. Devemos assumir parte da culpa pelo fato de a imagem distópica, tão em baixa resolução, ser mais sublime que o azul IKB, Dani? Claro que essa culpa não é nossa, mas ela recai sobre nós. Neo-cristandade na qual os lucros são segredo de mercado e os prejuízos socializados pelo que resta do Estado. A gente gargalha e o dente do nosso riso é o pixel onde a selfie distópica se apoia.

Ok, Dani, você deve estar pensando que falo demais. Na real, falo pouco, escrevo muito e leio mais do que precisaria para viver. Sim, ao invés de ir passar um café, tomei umas doses para ter coragem de escrever a boba frase que encerra o parágrafo anterior. É aquela vontade de resumir em uma frase apertada, cheia de uivos entre uma palavra e outra, o que a teoria tenta dar conta em quatrocentas páginas de tautologia. Qualquer poética é uivo, né Dani? E pensar que minha única ambição, no plano da frase, é que ela se estique ao máximo em um travelling que passeie por muitas realidades, as fixe em contra-narrativas e corte a cena no ponto final. Dei uns pegas também, Dani, para relaxar a tensão pós-instalação de chuveiro e poder te escrever mais mole. Por isso você está se incomodando com essas digressões que, para mim, são o modo natural de esticar meu braço em um gesto meio circular e longo que o afaste da mesmice do meu corpo e envolva a novidade que é o teu. É a tentativa de o texto abraçar o que está longe dele e o explica melhor com as palavras que ele não tem. Dani, dei mais dois pegas. Prepare-se: aquela coisa, saca?, de o braço alternar seu desejo em um vai-e-vem entre conformar-se com o ombro grudado no tronco ou aventurar-se através da mão assanhada com o espaço.

Mas preciso matar essa ponta, tomar só mais essa dose, retornar das minhas digressões e cair na real, pois em alguns minutos devo sair para praticar um delito. Lembra-se qual é o delito de hoje, Dani? Está aí com nosso calendário político? Veja lá qual é a violência defensiva que o Planalto nos força para hoje. Nerds estatais que nos leem em vigia, vocês ainda estão aí trabalhando? Se sim, tim-tim! Deixo um abraço para vocês, tenho que sair agora para o batente. Mas assim que eu sair de casa vocês poderão continuar vendo-me através das câmeras de vigilância particular que deixam seguras as ruas do Tucanistão. É certo que vocês invadem esses sistemas de pós-cinema para guardar a imagem de tudo na nuvem de Saturno. Se somarmos tudo o que já foi filmado, resultará em muito mais tempo que a idade do universo? Já pensou nisso, Dani? A gente ficar escamando tempos dentro do tempo? Ficar fatiando a realidade em layers de software?

Bom, é sério, preciso ir. Até logo! Não sei a que horas volto. Caso haja feridos, dará trabalho sumir com a sujeira toda. Não deixemos que os garis voltem para seus filhos bem mais tarde por conta de nossos enfrentamentos políticos. Os explosivos já estão nas meias e as ressignificações semânticas diluídas na saliva, para nos lubrificar ou discursar de modo inflamado. Nerds, até a volta! E agora preparem seu sistema de descriptografagem, abre aspas: ler com olho fóssil ou ler com olho míssil (o ali), fecha aspas. Entenderam? Não? Que pena, Dani entendeu.

Esperem aí, na volta eu continuo esse e-mail para Dani.

Dani, acho que matei um cara. Não sei, talvez fosse mulher, talvez fossem pedestres felizes em frente aos enfeites de Natal, talvez eu, eu, tenha me matado. Abres aspas. No som do carro tocava que, abre uma aspa, o meu único fracasso está na tatuagem do meu braço, fecha uma aspa, e, mesmo sem qualquer tatuagem no corpo, atirávamos em Papais Noeis made in China que enfeitavam a entrada de torres corporativas. Eram dois tiros apenas, balas de aço disparadas bem no momento das rimas. Fecha aspas. Estou com as ideias confusas, Dani, saí para cometer um ato político e agora volto a este e-mail que ficou parado por dias no computador e a única coisa que posso e devo te escrever é que talvez eu tenha matado um cara. Isso não quer dizer que matar um cara não seja um ato político. Mas eu não tinha saído de casa achando que ia matar um cara, daí a confusão, Dani, daí certo amadorismo sentimental. Talvez agora eu devesse voltar lá e dar outro tiro, como quem dá uma segunda mais direta e potente e sem vergonha e com mais confiança logo depois de, de forma amadora, ter perdido o cabaço. Mas talvez eu não tenha matado um cara, Dani, isso tudo pode ser um engano, talvez eu tenha apenas botado fogo numa agência bancária, extorquido a estrela da novela, mijado na calçada da Oscar Freire e, de repente, talvez eu tenha parado com tudo isso ao deparar-me com o olhar assustado da empregada doméstica que saía do edifício pela porta de serviço, a quem não consegui argumentos para convencê-la de que era também por ela que, nessa luta por direitos, eu tinha matado um cara. Talvez o cara fosse seu marido, Dani, um PM filho da puta que mete bala de borracha em estudante secundarista mas que compreende e dá carinho para o filho gay afetado de oito anos. Será com o fantasma desse pai que, no futuro, a bicha mirim será militar de alta patente e vai comandar a disciplina dos corpos de um batalhão de homens, ou irá se travestir e ser a estrela do bas-fond, ou irá redefinir a noção de estética, seja na literatura, seja na arte, seja revendendo maquiagem Avon. Como eu poderia matar seu pai, Dani, e destruir seu show? Como a gente pode empurrar os dominós em pé dessa maneira, sendo que a gente mesmo não passa de um dominó que não vai suportar receber o peso de alguém e vai também se desequilibrar e cair com todo nosso peso sobre outro alguém? Como entender o ser humano, Dani, como? Talvez por não entender eu tenha me apressado e matado um cara, Dani. Sabe aquele instinto burro de violentar o que a gente não entende? Será que foi isso que aconteceu? Mas talvez eu não tenha matado ninguém, tenha só comido alguém, Dani, claro!, mais do que resto de assassinato o que eu devo estar sentindo em meu corpo é resto de gozo, eu devo ter apenas comido alguém, alguém que deve ter sentido pena de mim ao prever que para te escrever eu usaria esse verbo tão pobre de metáfora em sua hierarquia predadora e desesperada: comer. Vou tomar outra dose, Dani, preciso de álcool porque se matei um cara vou precisar de toda inconsciência etílica quando a PM chegar aqui e eu estiver ouvindo e cantando bem alto Eu vou deixar, da Alcione, no repeat. Talvez eu também queira te escrever do camburão, Dani, sempre escrevo de forma mais urgente sob efeito de álcool. Não sei, mas sinto a angústia de ter matado um cara, então eu só posso ter matado um cara, mas para isso eu deveria ter ido ao Planalto, ido ao Alvorada, já que eu ia matar um cara eu deveria ter ido ao Palácio dos Bandeirantes cujo nome homenageia os caras que mataram muitos caras. Mas eu sinto em minha angústia, Dani, que matei um cara aqui, no meio da rua dessa cidade escrota que só tem cara que eu deveria matar, mas que não mato porque quem me vê passando feliz e abusando dos trejeitos do que sou deve ter vontade de me matar também, então há um empate espelhado entre as vontades de matar, e as balas dos disparos freiam, param no ar e se tocam no metal quente uma da outra, antes de despencarem conciliadas. Não tenho sangue nas mãos, nem cheiro de pólvora, só um copo vazio e uma garrafa pela metade, mas para mim é muito claro que matei um cara, ou talvez toda uma oligarquia, Dani, não sei, mas é que

dani, ontem eu ia desenvolver melhor o ultimo paragrafo, mas a bebedeira se impos. hoje, a ressaca. tomei um litro de cafe e resolvi sair para a rua. como de costume, um grupo de seres altos estava fingindo mexer na fiacao do quarteirao. passei rapido por eles e senti o desodorante nasdaq que exalavam. agora estou no banco de um trem da linha amarela do metro. percebo as cameras de vigilancia ao meu redor com todas as suas lentes focadas em minha figura. e nao e so isso. todos os passageiros, eu disse todos, estao olhando para a tela de seus smartphones e posso decifrar, na coreografia de suas digitacoes, que todos estao escrevendo sobre mim. ha pouco, minhas roupas foram descritas em detalhes por uma mulher que fingia digitar qualquer coisa ditada por uma crianca ao seu lado. por um momento achei que poderia ser noia minha mas, ja na estacao seguinte, varias pessoas que embarcaram reconheceram-me de imediato, encarando-me. dani, sinto o metal da arma entre a cueca e o absorvente e sei que em minutos pode chegar o instante de eu precisar acabar com tudo. posso tambem espremer as coxas, soltar o espartilho e acionar de uma vez por todas a bomba instalada em minha pelvis. tudo pelos ares. a encurralada esta posta, chega a ser bonito ve-la se formando, como uma valsa mafiosa de salao, a cara do nosso governador. agora, dani, enquanto um carinha encara-me com odio opus dei e digita algo em seu celular, recordo-me do pacto que eu e voce um dia selamos: acima de tudo somos estetas, e se um dia chegarmos ao momento limite de nossas lutas bio-politicas, devemos sussurrar a frase mais escrota do mundo para que a explosao ou o tiro certeiro coincidam com seu ponto final. sera cinematografico e literario. que frase eu poderia sussurrar agora, dani, em homenagem a nossa verve justiceira que nunca passou de desacato estetico? desacatar os dedos em riste que socaram na nossa cara sempre foi nossa foda bem dada com o azar. sera que os servicos de inteligencia colonial dessa merda de pais ja acionam a familia marinho para que a globonews invada as cameras de vigilancia desse trem tucanistao e transmita com exclusividade meu momento limite, bem no horario em que a porra da familia brasileira janta seu nugget sadia e o stf tira craca do nariz e limpa na constituicao? dani, acabo de dar uma movimentada leve nas coxas para deixar tudo a um milimetro da decisao. o fim engatilhado na regiao do meu sexo causa-me um curto circuito fenomenologico, nao ria, isso e serio e nao terei tempo de desenvolver esse enunciado. quantos enunciados nao tive tempo de desenvolver nessa vida que agora da de cara com seu limite. acabei deixando todos no campo entre o crime e a arte onde nao e preciso desenvolve-los, isso seria tirar-lhes o brilho estetico e a potencia explosiva. ja basta a ciencia mapeando e calculando o big bang, reduzindo-o a medidas antropomorficas que medem o tempo atraves da leve chamuscada que ele da na vida humana. a ciencia e uma estraga prazeres, ne dani?, uma empata-foda metodica e higienica, uma caga-regra. dani, o velho que esta ao meu lado percebeu a movimentacao da minha pelvis e enviou uma mensagem de whatsapp, respondida no ato. o casal no meio do vagao ajeitou sua postura que agora esta apontada para mim, como um bote peconhento. acho que posso nomear o que sinto nesse momento tenso de: tesao sem desejo. ah, dani, talvez essa seja minha ultima escrita. sempre tentei escrever frases que se esticassem em cinema sintatico-verbal e tivessem o ar da tua chegada com a porta do apartamento se fechando as tuas costas, num plaft de ponto final. tao bom me lembrar dessas coisas nesse momento decisivo em que com uma rebolada sutil, que varias pessoas ao meu redor perceberam, consegui que a arma escorregasse um pouco da cueca e ficasse presa apenas ao espartilho. resta pouco, e nao sei se isso e uma pergunta ou uma afirmacao. mas antes do fim gostaria de saber o que todos voces que estao espionando esse e-mail, voces da vigilancia multitudinaria que invade meu celular 24/7, do estagiario da nsa ao hacker indiano, sentem ao saber que nesse exato instante eu administro o acaso de todas as pessoas ao meu redor bem entre meus pentelhos e posso estancar o tempo soltando o espartilho. e posso ainda provocar um big bang particular cujo tamanho, ainda que atinja muita gente, nao ira muito alem do raio explosivo do meu corpo. dani, dani, ah! dani, sinto-me fazendo filosofia de verdade! que excitante dividir meus sofismas com voce e com os estagiarios da nsa e hackers indianos. apenas voces um dia poderao entender porque nunca pude dizer: sim, eu aceito o que me determinam. dani, a valsa se fecha. sinto o pais engatilhado em minha direcao e ja prevejo os apresentadores da globonews velando meu caixao coberto com a bandeira do inferno. consegui encostar a ponta dos dedos no metal da arma. em mais um milimetro e meio de movimento pelvico eu explodo essa merda toda. pegue a xerox, dani, com os codigos criptografados. abre aspas, ancudedê é o caralho



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